-
Orgulho louco
Surreal uma nota assinada por entidades médicas sobre a parada “Orgulho Louco” realizada em Alegrete, com cerca de 4 mil participantes. Diz a nota que a participação de pacientes psiquiátricos os “expõe” publicamente, o que seria “degradante”. Ocorre que a manifestação é contra o modelo de tratamento manicomial, conhecido por deixar os pacientes estigmatizados e com frequência abandonados por suas famílias. O Hospital Psiquiátrico São Pedro teve muitas décadas com população de “moradores” cujas famílias sequer eram localizadas. O que poderia ser mais degradante do que esse modelo, ao qual a Parada Orgulho Louco foi criada para se contrapor?Questionar o preconceito contra os transtornos mentais vem em boa hora e seria bom que começasse pelas próprias entidades médicas, que na Nota cometem um erro conceitual ao chamar os pacientes de “doentes” ou “enfermos”. A Organização Mundial da Saúde, na 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças, deixa bem claro que no capítulo de Psiquiatria não há o conceito de “doença” e sim de “transtorno”. A diferença é que “transtorno” não pressupõe uma causa orgânica para a disfunção do comportamento, que conceitualmente é considerado “multifatorial”, ou seja, como tendo influência de fatores biológicos, psicológicos e sociais, ou seja, de origem “biopsicossocial”.
As entidades médicas são fundamentais para a qualidade da saúde no país e tem prestado um grande serviço à população denunciando a falta de leitos hospitalares, a falta de equipamentos, a falta de estrutura para o atendimento médico, que o programa Mais Médicos não tem suprido. É um papel corajoso, esse de enfrentar as propagandas governamentais de que seus programas de saúde estão bem orientados, mostrando publicamente as deficiências do atendimento. Nesse ponto há consenso na classe médica, que tem orgulho de suas entidades. Mas infelizmente não podemos dizer o mesmo da posição quanto aos transtornos mentais.
Além de não ser simplesmente uma doença do ponto de vista orgânico, tendo importantes fatores psicológicos e sociais, o que chamamos de “loucura” é também uma condição do próprio ser humano, que vai muito além das questões médicas. Psicologia, Antropologia, Sociologia, História, Literatura, muitos campos das ciências e das artes tem contribuído para a ampliação dos nossos conceitos. De “Otelo” de Shakespeare ao “O Elogio da Loucura”, de Erasmo, do “Alienista” de Machado de Assis à “História da Loucura” de Michel Foucault, são muitos pensadores a jogarem luzes sobre a condição humana e a irracionalidade. Que as entidades médicas repensem e fiquem ao lado da cultura, contra o preconceito.