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RS, um estado de exceção fiscal?
Melina Rocha Lukik*Pode o governo do Rio Grande do Sul parcelar o pagamento de seus servidores? O Supremo começou, na semana passada, a enfrentar essa questão. Começou a decidir se suspende liminares, concedidas pelo TJ-RS, que vedam o parcelamento e impõem multa diária em caso de descumprimento. Paralelamente às discussões técnicas quanto ao caráter alimentar dos salários e quanto à possibilidade de multa diária, quase todos os ministros levantaram a questão da impossibilidade de pagamento das verbas tendo em vista a situação financeira do Estado. Qualquer que sejam os outros argumentos técnicos, esta circunstância torna o caso difícil: ou o Estado opta pelo pagamento dos salários, cumprindo assim os preceitos da Constituição Federal e Estadual; ou cumpre com o pagamento da dívida perante a União.
As duas hipóteses têm consequências. O pagamento parcelado dos salários adiaria o cumprimento de um dever de natureza alimentar, deixando “o servidor às portas da miserabilidade”, nas palavras do ministro Ricardo Lewandowski. Mas o não pagamento da dívida perante a União ensejaria o bloqueio automático das contas do governo, o que poderia trazer consequências ainda mais graves à manutenção das funções e despesas públicas e até mesmo impossibilitar o pagamento futuro destes mesmos salários.
Em divergência dos demais, o ministro Gilmar Mendes levantou questão interessante. Afirmou que a aplicação do art. 35 da Constituição Estadual, que determina o pagamento do salário até o último dia de cada mês, pressupõe um estado de normalidade das contas públicas. Não é o que ocorreria no caso em discussão, já que o Estado não dispõe de recursos financeiros para pagar seus funcionários e, por isso mesmo, optou pelo parcelamento. A aplicação da lei deveria ser imposta somente em períodos normais e dentro das possibilidades fáticas; sobre fatos que não se poderia prever, torna-se esta inaplicável. Se o Estado demonstrasse que fez tudo a seu dispor para cumprir com o pagamento dos salários, mas mesmo assim está impossibilitado de fazê-lo, não haveria como justificar a determinação de que faça o pagamento em dia, nem muito menos que se aplique multa no caso de descumprimento.
O voto do ministro Gilmar Mendes autorizaria um “estado de exceção fiscal”, no qual o governo estaria legitimado a descumprir certos deveres pecuniários caso se encontre em situação de limitação financeira? Diante das dificuldades pela qual passa não só o Rio Grande do Sul, mas diversos outros Estados da Federação, tal visão abriria uma maior flexibilidade na gerência de suas respectivas finanças públicas, já que passariam a poder descumprir certas obrigações financeiras caso se encontrassem em uma situação de impossibilidade de satisfação das mesmas. No limite, a possibilidade de parcelamento dos salários poderia inclusive beneficiar os funcionários públicos, já que os Estados ficariam menos propensos a rejeitar aumentos salariais ou novas contratações, por exemplo.
Entretanto, há o ponto cego na discussão até aqui. Quais as circunstâncias que levaram à situação de calamidade das contas públicas estaduais? Os governos, atuais e passados, tiveram uma gestão responsável e eficiente das finanças públicas? Gastaram menos do que arrecadaram? Mantiveram o patamar de endividamento dentro dos limites legais? Cumpriram com a lei de responsabilidade fiscal? Se a situação de impossibilidade de pagamento é resultado de ações e omissões do governo, temos um problema: quanto mais o governo erra, mais poderia se eximir de cumprir outros deveres legais relativos à sua situação fiscal. Precisamos de prevenção. Quando o Supremo retomar o julgamento, os ministros poderiam discutir como evitar, no futuro, os problemas que hoje são causados por erros dos próprios governos.
* Professor da FGV Direito Rio.